8 de dezembro de 2010

Sentimos

Cada beijo, cada olhar e cada gesto como se fosse só nosso. Como se pudesse durar para sempre. A cada passo despreocupado, a cada sorriso involuntário caímos na certeza construída de que desta vez acertámos, que desta é que é. 
As ilusões são tão próximas daquilo que acreditamos ser verdade que vamos, de sorriso nos lábios e olhar inocente, como se não conhecêssemos o perigo. Vivemos no céu e no inferno, no calor dos sorrisos e no gelo das lágrimas, numa montanha-russa de sentimentos à qual vão saltando parafusos nas suas contínuas viagens. Mas vamos, contra a maré, a sorrir, a tentar convencer todos os que nos rodeiam de que sabemos o que estamos a fazer de que temos a certeza. Às vezes estamos certos. Às vezes sabemos o que estamos a fazer... mas na maioria das vezes estamos apenas a arriscar às cegas na esperança de sair ilesos de uma luta injusta que não envolve armas. Mas muitas vezes a realidade cai-nos nos ombros como um piano lustroso com o peso de todas as dúvidas, todas as palavras escondidas, todos os silêncios desiludidos. E nós sorrimos. Continuamos. Fingimos que estava tudo previsto e que o comboio não saiu dos carris. Será que um dia vamos acordar e perceber que já nem sequer somos nós a conduzir o comboio?

16 de novembro de 2010

Cansaço

As pessoas cansam-se, a pele desgasta-se e as palavras de tão repetidas parecem não bastar. Sucumbiste. Deixaste cair os braços e a cabeça, deixaste a respiração encaixar no ritmo constrangido do teu coração e agora não sabes por onde começar. A garganta apertada guarda todos os medos e segura as palavras que vêm do peito. Só as frases desenhadas na tua cabeça têm livre-passe até à tua língua. E tudo o que dizes chega filtrado, purificado, sem mácula de emoção.
Repetes a lenga-lenga do cansaço até te convenceres de que tudo vai ficar bem se descansares, se dormires, se puderes fechar os olhos e fingir que o mundo parou... mas nunca fica e voltas a entrar numa espiral de enganos que te protege e te corrompe. Os dias sucedem-se com a intensidade e a insistência das ondas, vão corroendo barreiras e sobras tu, apenas tu. 
Sem armas, sem lutas, sem rumo.

11 de novembro de 2010

escrito

O mundo já foi escrito. Tudo já foi dito sob a forma de palavras, de metáforas e de parágrafos desenhados a sangue quente. E de que nos serve escrever os dias sem os sentir? Que sórdido consolo temos nas palavras que escolhemos com o cuidado cirúrgico de quem não sabe o que dizer?
O nosso mundo e o outro já foram vertidos em caixinhas literárias para que, sem nunca existirem, nunca deixarem de existir. Mas o mundo pede-nos para ser escrito todos os dias, para ser vivido, partilhado. E nós escrevemos tudo o que somos, em cada passo que damos... na pressa de deixar marcados os caminhos que trilhamos.

19 de outubro de 2010

Sem cor

A rotina desgasta. Vai roendo pequenos pedaços de nós. Mas também nos mantém em movimento. Empurra-nos como se o tempo fosse uma formalidade. Esconde-nos do mundo e deixa-nos numa sala de espera em constante circulação. É lá que permanecemos em serenas expectativas. Saltamos de cadeira em cadeira à espera de mais um dia sem saber de onde nos vai chegar e que música irá trazer. E sem querer, crescemos. O mundo perde as suas formas coloridas que nos punham sorrisos no rosto. As ruas já não estão desenhadas a lápis-de-cera e as bicicletas já não trazem fitinhas de arco-íris no guiador. Chove e a chuva já não é azul, roxa e vermelha, feita de pequenas poças onde molhar as galochas... e já nem o guarda-chuva é às bolinhas. 

26 de agosto de 2010

Tenho medo de me habituar à tua ausência... e deixar de sentir a tua falta.

25 de agosto de 2010

A beleza que nos esconde

As pessoas são um nojo. Somos maus, feios e cruéis por dentro. Temos a horrível tendência para cometer as maiores atrocidades aos outros seres humanos.
Hoje vi a beleza que nos esconde despir-se para mim e num acto nada sensual revelar os tenebrosos contornos da sua pele. As pessoas são más, feias no seu âmago por muito sublimes que se desenhem. E hoje vi com clareza o doce mel com que se cobre o fel que nos corre nas veias, senti os espinhos venenosos que se escondem nas folhas verdes à sombra da mais bela rosa.
Hoje, a humanidade não me serve porque é o reflexo do mais repugnante ser, que nada tem de humano.

12 de agosto de 2010

Breves instantes

Às vezes não sei o que te dizer. Porque, às vezes, duvido de tudo, questiono tudo o que me rodeia e sinto medo. Às vezes não sei encontrar as palavras para te ler. Não sei ver nos teus olhos aquilo que quero acreditar que sentes. Há momentos em que os sinais se misturam e nada do se move à minha volta se encaixa. Tudo se mistura numa sinfonia sem maestro. E por breves instantes nada do que represento sou eu, nada do que respiro é meu.

Por breves instantes, respirar é involuntariamente voluntário e o sal do corpo é difícil de guardar. Por momentos, nada faz sentido e tudo grita... e o teu silêncio grita ainda mais, até que a música dos dias se consome num latejar compassado e mudo, como se pedisse desculpa por não poder parar e suspirar de alívio. Por breves instantes tudo se mistura e nada encontra o seu lugar. Nesses instantes, pega-me na mão e aperta-a até que o universo fique completo outra vez.

5 de julho de 2010

Em silêncio, viver a cantar.

Um dia disseram-me: os pássaros que não cantam podem voar mais alto. Vivem o silêncio na concentração de chegar mais longe e não perdem o rumo. Mas os pássaros sem voz são aqueles que eu vejo descansar nos ramos mais escondidos das árvores. São os que se aninham nas sombras na expectativa de um raio de sol que os inspire. Para mim, esses são os pássaros que ainda não sabem o que é a inspiração. Não sabem que têm voz e que as melodias desenhadas no vento tornam os dias mais intensos. Estão perdidos entre os fins-de-tarde que se esquivam dos dias e aqueles que descansam nas horas que abrem as portas à noite. Estão esquecidos nas folhas que caem das árvores a cada amanhecer, ficam em silêncio sem saber como cantar. Para mim, esses pássaros voam alto mas não respiram fundo, não sorvem o ar mais puro porque não conhecem a alegria das melodias que podem entoar.

Mas acredito que, um dia, também eles vão aprender a cantar.

23 de junho de 2010

Hoje não me bastam meias-palavras

Há dias que não pedem licença. Vão entrando lentamente no nosso futuro e encaixam-se na bainha das semanas, onde ninguém se lembra de procurar. Há dias que, de tão pouco dias que são, são quase uma afronta ao ritmado e infalível calendário.
Há dias em que as palavras se esquecem de ser palavras e os olhares deixam de ter significado. Nesses dias, os gestos não bastam, os planos não servem como alicerces para construir o amanhã e as meias-palavras são só uma desculpa para fugir de tudo o que nos assusta.  São desabafos por terminar, ataques mal desenhados que se reescrevem em repetição contínua e que nunca conseguem chegar ao fim. E hoje não me bastam meias-palavras.

31 de maio de 2010

mergulhar

Fugir. Esconder-me de tudo. Fechar os olhos e sentir o conforto do silêncio. Mergulhar no azul e sentir a calma que me ocupa, que não deixa espaço para mais nada. Nem uma nódoa, nem uma dor, nenhuma dúvida. Esquecer os farrapos de areia molhada na pedra gasta do tempo. Esquecer as noites de trovoada, os fins de tarde cinzentos que molham as janelas e todas as manhãs que custam a começar... Respirar fundo e mergulhar de olhos abertos, sem medo de me afogar.

10 de maio de 2010

Balanço

Lento, compassado. O corpo esquecido num berço de madeira sem protecções. As ondas de dor abraçam-na suavemente e o vento lava-lhe as lágrimas que não quer deixar cair. Os dedos apertados na corda grosseira dão-lhe a segurança insegura de quem raramente tem a certeza mas nunca pensa em duvidar. Os pés cruzados amarram a vontade de fugir e o balanço continua. Insistente, regular, constante. Como se fosse durar para sempre...

30 de abril de 2010

Começar outra vez

Sem recomeçar. Dar os primeiros passos como se nunca os tivesse dado. Escolher descuidadamente o caminho sem pensar nos quilómetros a percorrer. Respirar fundo sem o peso das responsabilidades e começar outra vez. Como se nada fosse. Como se o mundo só ficasse completo com um sorriso. Como se fossem os meus dedos a desenhar as ondas do mar. Começar outra vez. Sem hesitar, como da primeira vez.

27 de abril de 2010

Enche-me a casa de balões

Faz-me uma surpresa pouco surpresa que me deixe sorridente. Faz desenhos nos balões e deixa-os espalhados pela casa. Escreve o que quiseres em cada um deles e não sejas tímido com as cores, todas elas combinam comigo. Prometo que vou ter cuidado para não rebentar nenhum e quando perderem lentamente o ar, vou guardá-los. Sabes que adoro ver como ficam pequeninos os desenhos e como ficam perfeitas, naquele tamanho, as letras que escreveste em capitulares no balão cheio.

22 de abril de 2010

Girassol

O calor avultava o cheiro a bolachas de canela. No ar quente, o aroma característico de uma noite de verão. E as bolachas acabadas de fazer, ainda a fumegar, em cima da mesa do jardim.


Para ela tudo tem um cheiro característico, mesmo o girassol confuso do jardim, que nunca persegue a luz do sol. Acha que é por causa do orvalho que a manhã cheira a fresco e a comida acabada de fazer. Para ela é tudo tão óbvio. E quando lhe vejo um sorriso acidental apertado entre os lábios, sei que naquele momento ela está feliz. 


Lembro-me de ter tirado uma fotografia ao girassol do tamanho de um prato, que cresceu à toa de uma semente que o papagaio deixou cair. Ela sempre gostou daquela flor. Era confusa, como ela. Era gigante e estava sozinha num ambiente que nunca se preparou para a receber. Era uma lutadora e tornava o verão mais alegre. Era amarela, tinha um sorriso em cada pétala e resistia. Era isso que a tornava especial.

13 de abril de 2010

Happy XL

A música é serena. O ar cálido abraça o fim-do-dia como se não quisesse receber a noite. Num terceiro degrau de uma qualquer escada, ele fita os ténis sujos, destruídos, vividos. Relembra os sorrisos XL que via na cara de todos os amigos e que também ele ostentava, apertado entre as bochechas.
Tem uma vontade imensa de recuperar os momentos espontâneos, pintados a gargalhadas, emoldurados com abraços. Deixa a música dançar noutro ritmo e levanta-se demoradamente. Olha em frente e vê uma expressão que reconhece, um sorriso que sabe desenhar com os dedos... XL, vindo de outros Verões.

6 de abril de 2010

Escrevia

Pegou na caneta e desenhou as letras no papel. Com receio, misturou a tinta escura com a cor seca do caderno. Sem querer, despejou as palavras que ainda não sabia estarem escondidas atrás da pele... naquele lugar onde se guardam os medos. Desenhou cada letra com cuidado, com a delicadeza de quem sabe por onde começar. Mas tinha a certeza de que não sabia. As letras juntavam-se intuitivamente, como se cada uma delas só fizesse sentido rodeada de outras formas e sons. Tentava, a cada frase, desfazer-se da culpa difusa que lhe pendia nos nós dos dedos. Não sabia de onde vinha, não conhecia a sua origem, nem sabia definir a sua génese. Sentia-a, gelada, a consumir-lhe a pele e a guiar-lhe as mãos pelos recantos do dia.
E os dias foram passando, a languidez das horas a pesar-lhe nos seus dedos e a urgência de escrever a marcar o ritmo. Apesar dela, o mundo continuava, o tempo corria atrás de tudo o que nunca voltaria. E ela, sentada num qualquer vão de escada, esquecia as curvas apertadas do caminho e escrevia. Não sabia bem porquê, nem sobre quê, mas... escrevia. Até que um dia levantou a caneta do papel e já não sabia quem era.