Passeia as mãos pelo lençol quente, vazio agora, com a forma difusa de alguém que um dia lhe aqueceu a alma. Tenta fugir, voar para longe daquela prisão, daquele vazio que incoerentemente lhe pesa no coração, as asas recusam-se a abrir, tem medo de não ter um novo abrigo para pousar o espírito. Levanta-se atirando os l
ençóis brancos para o fundo da cama, enfia os pés nos chinelos, mecanicamente, e o instinto leva-lhe a mão ao cabelo e depois à boca num bocejo.
Há quantos dias é assim? O mesmo peso ao deitar e ao levantar, a mesma angustia que nasce não sabe de onde, que se planta no fundo de tudo e que se espalha como o mercúrio de um termómetro partido.
Os passos lentos, lânguidos, sem direcção levam-na até à janela. A luz irrompe arrogantemente alegre e viva, no entanto, após consentir a sua entrada no quarto, vira-lhe as costas na indiferença da anomia que sente. Senta-se na cama, a boca sabe-lhe a manhã de verão, a perfume do calor do sol e as mãos ainda estão dormentes, o sangue ainda não circula normalmente no seu corpo todo. Junta os joelhos ao queixo e abraça as próprias pernas, nesta posição sente-se protegida, escondida num canto escuro do mundo, onde ninguém a pode perturbar. O silêncio. Sabe-lhe bem escutar o silêncio ecoar na alma, quase como ver os raios de sol numa manhã de chuva.
O quarto cheira a maçã, incenso que queimou ao mesmo ritmo que os seus olhos se queimaram com lágrimas, há um pássaro que canta pretensioso e impertinente lá fora. E ela pensa que há muitos pássaros assim, que cantam na nossa janela e no nosso ouvido e depois voam, logo quando começamos a gostar do seu canto, eles fogem. Levanta o queixo dos joelhos, estica as pernas e deixa-se cair no colchão, diz alto:
Eu também sei voar.