- Então, não estás a olhar!
- Não preciso, vejo o rio nos teus olhos.
Ela riu, boca escancarada, dentes brilhantes a reflectir o sol: achou aquilo tão foleiro que não conteve o riso. Mas gostou.
- Vês? O meu charme é irresistível.
Olhou para ele com um sorriso de gozo comprimido nos lábios. Ele continuou:
- Gosto de gargalhadas fáceis. E a tua é deliciosa.
Não a ouvi mas senti-lhe o cheiro. Uma lufada de ar fresco com um travo doce que interrompeu o meu pensamento. Não sei se mais alguém a sentiu, desde que perdi a visão o meu olfacto apurou-se.
Com alguma falta de inocência toquei-lhe nos pés com a bengala, foi uma provocação maliciosa porque sabia perfeitamente onde estava o corpo dela - mas às vezes gosto de tirar partido da minha condição. Pedi desculpa apressadamente e ouvi-a responder "não faz mal" numa voz quente e segura, quase cerimoniosa. Senti-lhe um sorriso nas palavras e isso obrigou-me a sorrir também.
Sento-me e olho à minha volta. As malas e mochilas carregam roupa, comida, livros e memórias que nem sempre sabemos que trazemos conosco. Os rostos nada me dizem, os olhos fugidios escondem-se em mundanidades e afastam a perturbação que lhes rouba o sono. A vida é feita de hipocrisias.
E as malas seguem fechadas com cadeados coloridos que usamos para desencorajar os mais curiosos. Os segredos guardados que escondemos com os segredos que partilhamos. As palavras que tememos encobertas pelas frases que construímos à força. Os sorrisos que montamos como jaulas para controlar o gelo da angústia tornaram-se nos nossos sorrisos mais genuínos. Dizem-me que a tristeza é momentânea e que a felicidade vai e vem, que vivemos numa fronteira beligerante como refugiados e que procuramos incessantemente um equilíbrio que nos desequilibra.
A vida é feita de hipocrisias.
18 de outubro de 2011
Todos nós temos histórias às quais não queremos pôr um fim.
Quando não temos forças, sorrimos e deixamos que a maré nos leve para longe. Quando acordamos, esperamos que o dia se desdobre sem sobressaltos que nos façam perder o rumo. Quando perdemos o rumo, procuramos um lugar seguro que nos aconchegue a mente e a alma.
Às vezes, quando te digo que sim estou a tentar dizer-te que não. E quando sorris não sei o que queres que eu pense. Quando as horas se atropelam sem sentido, vamos correndo atrás do tempo e contornamos o que nos faz falta. Fingimos que está tudo tão bem como estava. Que o presente é um espelho embaciado do passado, só precisa de se habituar à temperatura. Quando tropeçamos esquecemos que podemos cair... e continuamos a andar.
É um jogo desconexo e sem regras que nos conduz pelas rotinas. É uma relação simples de consequências que nem sempre queremos confirmar. É um atropelo ordenado pelas ruelas do pensamento. Ninguém perde, ninguém ganha. O jogo não é nosso.
Estou cansada de puxar, de tentar, de sentir. Estou cansada e às vezes tenho vontade de desistir. Por isso suspiro. Suspiro baixinho para ninguém perceber. Suspiro por dentro para tentar esquecer. Suspiro porque para mim importa, porque não consigo fazer uma pausa para pensar. Suspiro porque não quero pensar, porque não posso fugir. Suspiro porque não consigo parar de respirar
21 de julho de 2011
Da última vez foi diferente, mas há ciclos que se repetem, dos quais não consegues fugir por muito que tentes. Armadilhas que o teu cérebro cria para defender qualquer outra parte do teu corpo. Da última vez, quando tive dúvidas, ignorei-as. Deixei que se apagassem com a chuva quente e o vento de outros lugares. Quando dei por mim já eram certezas e não havia nada a fazer. Desta vez ouço as dúvidas com a força de um trovão,não as consigo ignorar. Mas não sei como as desenhar nas palavras nem remexer nas luzes de aviso da percepção. Não sei o que fazer com elas. Mas tenho medo que se transformem em certezas. Daquelas frias, que mordem os dedos e as lágrimas.
Às vezes tenho a certeza. Uma certeza gélida que me aperta a garganta. Uma certeza que me rouba as forças e me escoa os olhos. Não é um leve sopro. É uma angústia espessa que me corrói os pensamentos e me envena as palavras. Não é uma dúvida. É uma resposta nascida de uma pergunta por fazer. E às vezes essa certeza apodera-se de tudo o que toco com o olhar. A certeza de que não vamos sobreviver a isto.
Às vezes é preciso acreditar pela simples necessidade de continuar. Às vezes é preciso pôr as questões de lado e seguir, sem desviar o olhar. A estrada pode ser íngreme e tortuosa, podemos chegar com os joelhos esfolados e a testa suada, mas chegamos. Às vezes é preciso acreditar nisso... só nisso.
Nada mudou. Mas, de alguma forma, nada é o mesmo. Como é que sabemos que algo se partiu? Quando é que percebemos que a ligação se perdeu? Qual é o ponto em que temos a amarga certeza que desligámos aquilo que nos dava energia? Sentir que nada mudou, mas que algo mudou. Sentimo-nos escorregar no escuro até um refúgio que não existe. O conforto é a pele dormente, o descanso é a mente vazia. Como é que nos apercebemos de que deixámos de usar o instinto e passámos a usar a razão? A razão aconchegante que nos deixa tão áridos e secos.Ouvimos tantas vezes as mesmas frases… se nada mudou porque não é o mesmo? Descemos ao fundo, procuramos incessantes até ter o coração agitado e as mãos doridas. E depois percebemos. Sentimos a gota gélida da compreensão na nuca. Sentimos as mãos mais vazias do que nunca. Se nada mudou, a mudança aconteceu em nós.
Escureces. Encostada a um canto do dia para que ninguém te veja. Esperas alguém? Escutas. Escondes-te. Escrava do que te dizem que és. Esqueces o que te levou até ti. Escreves na tua mente o que não te atreves a dizer. Escavas o poder que as palavras te dão e que não queres usar. Esculpes as letras até não restar nada. Nem sentido. Nem ordem. Nem dor.
- Acho que estou estragada.
- Não és uma boneca que cai na água e fica estragada. Não é assim que funciona. - Mas sinto que se partiu algo aqui dentro.
- Não sejas parva, estás só cansada. - Dói-me a cabeça, mas não é uma dor que passe com um comprimido.
- Toma um na mesma. - Estou estragada.
- Pára de dizer isso, não estás nada estragada. Onde é que foste buscar isso? - Não sei, sinto-me estragada.
- Toma. Isto vai fazer-te sentir melhor. - Não quero. Não me sabe bem, não me serve para nada.
- Ajuda. Confia em mim. E agora dorme. Amanhã vai ser um dia melhor.
Segredos, receios, medos. Atilhos que nos amarram os movimentos e pedras que nos agarram ao fundo. Todos os medos que não ousamos pronunciar, com um redundante medo de que se tornem maiores e piores, encostam-se num cantinho de nós e descansam. Até que um dia há um barulho, uma luz, um tilintar na nossa alma que os acorda, que os traz ao palco e que os põe a gritar. Nenhuma das defesas que tínhamos construído distraidamente nos protege e nada aparenta encaixar. Então fechamos os olhos.Esperamos. Respiramos de pulmões apertados e confiamos que tudo foi um pesadelo, que vamos ficar bem, que nada disto vai deixar marcas. Mas deixa. E vamos coleccionando cicatrizes de guerras que nem sempre quisemos. E vamos escondendo as marcas por baixo de capas bonitas, brilhantes, que ofuscam a dor.
Como é que se encontra o caminho quando já nos perdemos nos atalhos? Como é que se conduzem os pés cansados até ao destino se ninguém sabe se ele existe?
Os passos dados no escuro nem sempre nos levam até à luz, mas ficar imóvel na escuridão não nos tirará de lá. Foram tantas as vezes que deixámos de ser nós a conduzir, tantas as vezes que perdemos o pé e ficámos sem fôlego. São tantos os medos que nos perseguem e que olhamos através do espelho sem fugir e sem os enfrentar. Tantas razões que nos sufocam e amarram. Como é que se esquece que escondidos no escuro podem estar outros perigos?